Monday, December 20, 2010

O Monstro que Comeu de tudo

Antes que o ano se encerre eu devo dividir este texto que escrevi há uns meses atrás:

Este fim de semana aconteceu algo interessante. Um destes momentos onde uma porta para um outro universo se abre e você, por um segundo vê um mundo diferente do seu. Completamente diferente. E num segundo você está de volta para a sua realidade mas de certa forma, trazendo de volta com você este outro mundo.

Nós fomos para o norte do estado de Nova Iorque para uma região linda chamada Catskills onde fica a cidade de Woodstock. Nós estamos procurando casas e pensando sériamente em comprar uma casa na região, uma casa de campo, perto da natureza onde possamos relaxar e lavar um pouco do futum da cidade grande que está impregnando nosso cérebro. Toda vez que vamos e passamos o dia vendo casas é uma delícia por que a área é tão linda e nós nos sentimos cheios de energia. Woodstock ainda tem um charme hippie, lojinhas lindas e todo mundo parece ser como agente, liberal, culto, ecológicos etc etc etc. Mas é lógico que todo mundo não é como agente e o enclave de hippies liberais de Woodstock está cercado com outros enclaves menos sofisticados.

A casa que vimos no Sábado foi paixão a primeira vista, pequena, fofa, com lareira, janelas enormes, cozinha de sonho… só não deu tempo de ver o resto do bairro por que estávamos atrasados para ver outra propriedade. No dia seguinte resolvemos voltar para explorar o bairro, ver se haviam lugares para comprar comida por perto e tudo mais. Dirigindo pela rua de trás da casa eu notei trailers dilapidados, e olhando com mais atenção vi galinhas saindo de um trailer. Um galinheiro improvisado. O jardim coberto de móveis velhos e lixo. Meu cérebro rápidamente trabalhando e processando a informação. Ter um galinheiro no quintal não é ruim, ou é? Quem não gostaria de ter ovos frescos? Meus olhos, sem esperar o cérebro terminar a farça, se perderam no resto da paisagem, montanhas de lixo, mais móveis velhos e, peraí… gente! PUTAQUEPARIU! Ali na árvore em frente da casa caindo aos pedaços um veado morto pendurado de cabeça para baixo. Era uma casa de caçadores com certeza. E os veados, lindos que vemos durante nossas andanças entre uma casa e outra, os veados que tornam o Catskills mágico, que tornam a natureza próxima e fazem você querer morar ali para sempre.. ali estava. Morto e pendurado. “Segue em frente, segue em frente” eu disse para o Anthony, tentando apagar o que ainda estava no meu campo de visão.

E em frente nós seguimos, passando por mais trailers com jardins cheios de lixo, um atrás do outro, como se estívessemos dentro da barriga de um montro que comeu de tudo e teve má digestão. Meu cérebro em suspensão, sem pensar, só olhando a escala do lixo com claros indicadores que ali moravam famílias. Ao chegarmos no fim da rua sem saída vimos um menininho sair de um dos trailers acompanhado de um cão fila. Enquanto manobravámos o carro o menino nos observava de braços cruzados (sem camisa num frio de dez graus), agente dando tchauzinho com sorrisos forçados, tentado agir como qualquer pessoa age de frente a uma criança. E o menino com um rosto impassível, só esperando agente dar o fora. Ali estava a única pessoa que vimos no meio daquele destroços. Um criança de seis anos que não riu, não deu tchauzinho e se ficássemos para descobrir, se mostraria capaz de quebrar a nossa cara.

Na viagem de volta para Manhattan eu fiquei me questionando. Eu me vi como a pequena burguesa tendo um chilique ao ver a classe pobre em seu habitat. Para mim os veados são animais lindos que devem ser permitidos viver mas eu continuo comendo galinha e carne de vaca sem problemas, mesmo com peso na consciência. E o que me difere da pessoa que mata e pendura o veado na árvore? O meu preconceito? O meu horror ao outro, ao diferente? O horror, não de descobrir que existe pobreza, mas o horror de descobrir que esta pobreza é vizinha do lugar onde eu iria morar. Me senti como o monstro que comeu o lixo e teve má digestão. E lá estávamos nós a mil por hora na estrada, correndo de volta a cidade grande. De volta para a bolha onde o intestino da fábrica social não é visto.

3 comments:

Jorge Hori said...

fantástico!!!!!!!!!!

Clara Hori said...

Ai que dificil é ter consciencia! Muito bom Cams!

Mari Labaki said...

Cak's,

Muito boa reflexão... pois é, o intestino da fábrica social está bem mais perto do que supomos.

Beijo grande.